Querido Pai,
Hoje fazia e faz 50 anos. Por todos os dias que foram
vividos e por todos aqueles que vivemos por si, muitos parabéns!
‘Se calhar não morremos enquanto alguém sentir por nós’- Uma
vez li esta frase num livro e desde ai tem sido muito claro para mim não deixar
esquecer o meu pai, pelo menos no meu coração.
Quando penso no cancro e na doença horrível que foi, nos
tratamentos difíceis de suportar e na cura que não chegou, lembro-me de sentir
que o pai nunca morreria até que morreu e eu não senti nada. Nada. Só um vazio
frio e escuro. Durante algum tempo até acho que nem estive cá, achei que o
silêncio apagava tudo… Olho para trás e percebo que era a dor de perder um pai
dentro de mim, mas este é o problema da dor: ela exige ser sentida! E eu, tive
de perceber que o meu pai já não sofria da existência enquanto pessoa mas eu,
pelo contrário, sofria enquanto pessoa sem a existência de um pai sem cancro.
Passaram-se uns tempos e eu apercebi-me que tinha a alma
afogada em areia, quase sufocada e foi ai que escolhi chorar. Acho que o pai
percebeu a minha ideia e discretamente passou a ser além de pai, professor de
lágrimas: deixa-me chorar quando preciso, diz-me quando não posso mas mais
importante, ensinou-me que o sorriso é das melhores coisas no mundo- é fácil
sorrir- e melhor ainda, é aquilo que de mais barato podemos dar aos outros, por
isso, não há desculpas, há sorrisos! Nestas alturas em que o Sr. Prof. me
permite umas lágrimas, eu choro: choro porque preciso de si, porque tenho
saudades suas, porque é difícil viver sem pai, porque os meus irmãos crescem
sem si, porque a vida devia ser vivida ao lado de um pai e porque nada posso
fazer, choro. Eu acho que sou alegre, contudo sei chorar e isso acho que me
permite ser eu, não é proibido chorar e não faz de mim mais fraca pelo
contrário, faz de mim a Matilde que chora porque precisa de lavar a alma porque
os anos passam mas a dor não, a dor é pesada e faz caminho comigo. Claro que se
vive com ela e BEM, mas ela não deixa de existir porque o meu pai também não
há-de voltar.
Às vezes penso que é tão difícil ser sua filha sem o pai
aqui… Eu sei que é chato mas é verdade! É que o pai e o seu nome viveram tantas
coisas juntos e tantas coisas com tantas pessoas, que é tantas vezes lembrado!
E eu, que não sou o pai, que me chamo Matilde mas que também tenho o seu nome,
Salema, e que também vivi muitas coisas com o meu nome, sou só a sua filha, mas
muito contente por isso! Com isto, quero explicar-lhe que me é difícil ser como
o pai, porque as pessoas gostavam de si por aquilo que era, pela preocupação
constante e pelo olhar verdadeira mente para com outro.
Não acredito em heróis, não acho que o pai tenha sido um
herói, acho sim que o pai viveu a sua vida com a vida que a vida lhe deu e
desta maneira foi um exemplo para mim: dois cancros, inúmeros tratamentos,
várias operações e muitos dias difíceis. Lembro-me de lhe perguntar como o pai
estava e a resposta era: ‘não tou bem mas há vidas piores’, e hoje, quando
penso no porquê desta minha vontade maior que todas as outras em querer ser
enfermeira, é por causa destas vidas- todas as vidas. Eu não sei explicar o que
é a vida mas sei que o pai se agarrou a ela enquanto pode e isto é porque a
vida é especial, só pode e não tenho dúvidas.
Acredito e faz-me sentido que a vida só pode ser vivida pelo
amor aos outros, e os outros são quem conheço e quem não conheço, todos aqueles
com quem um dia ainda me vou cruzar. Para mim, a vida tem sentido, eu acho que
toda a gente merece uma parte de nós, qualquer parte, todas as pessoas,
qualquer pessoa!
É importante dizer-lhe pai, que vivo bem e aceito tudo quilo
que aconteceu, eu sou feliz e costumo
dizer que, eu sou assim, a Matilde que todos conhecem porque o meu pai morreu,
por mais horrível que isto pareça, foi a força da circunstância, eu cresci
muito, aprendi muito e sou aquilo que quero ser ou ainda a caminho disso. A
verdade é que os anos passam e a vida anda, e muitas vezes é assustador quando
descubro, em pânico, que não me consigo lembrar da sua cara. São estes os
momentos mais difíceis de não se ter pai. É nestas alturas, em que estou
assustada que me perguntam o que se passa e eu nada digo mas, dentro de mim o
pai grita-lhes: 'DE MIM ELA PRECISA DE MIM'.
Querido pai, dizer-lhe mais uma coisa. Não fique triste, não
herdei o seu carinho nem o gosto pela cozinha, pelos pratos e pelos sabores,
acho que sou até um bocado esquisita é pouco aventureira mas por batatas fritas
sou maluca... Contudo herdei a sua paixão pelas pessoas, por fazer os outros
felizes e pelas pequenas coisas. A vida é boa pai! E por isso, esta é a minha
primeira carta, mas muitas mais virão porque aquilo que eu mais gosto neste
mundo são as pessoas e é assim que eu quero ser feliz!
Sei também que o pai costuma vir ver-me e por isso muito
obrigada, sei também que a dor é inevitável na vida e por isso, obrigada por
passá-la comigo!
Um beijinho, da filha que o adora e que tem muito orgulho em
si!
Matilde
P.S. 'Haja o que houver eu estou aqui!'
Ternura...
ResponderEliminarQuerida Matilde,
ResponderEliminarA pingar de orgulho por ti. Um texto tão bem escrito só pode vir de tão bons livros que tens lido. Um mau texto não comove ninguém e este é belíssimo.
Gosto muito de te acompanhar neste caminho, já lá vão uns anos. Se calhar, esta coisa das escritas e das leituras é o bocado de mim que posso deixar em ti. Isso e os bocados de pai que eu e o tio vamos deixando escapar mesmo sem ser de propósito, mas que são sempre bons de recordar, porque o teu pai era uma pessoa divertida e igual a si própria.
Deixo-te um beijo enorme neste dia especial
Tia Xica