Olá Mat!
Desculpa só escrever-te
agora, mas desde que cheguei ainda não consegui parar. Tem sido muito intenso e
ainda estou a adaptar-me…Cheguei à ilha há 3 dias mas já vivi tantas coisas que
parece que cheguei há uma semana! Tenho muitas coisas para te contar sobre o
que se passa aqui mas hoje quero principalmente escrever-te sobre a família. Eu
acho que é a melhor coisa do mundo!
Para
que saibas, afinal não sou uma, somos três! A Mariana, a Phoebe e eu! Somos uma
equipa, tomamos conta umas das
outras.
A
Mariana é portuguesa, é professora de Psicologia na Católica do Porto. Tem sido
uma ajuda importante para mim, conhecemo-nos 2 dias antes de eu chegar a Lesbos
pelo Facebook e rapidamente a Mariana marcou um quarto para mim no mesmo hotel.
No primeiro dia, eu estava muito cansada porque a viagem tinha sido difícil e
demorada, a Mariana achou por bem fazer-me ver que eu precisava de dormir e que
não precisava de ficar no campo, “precisamos de tomar conta de nós em primeiro”.
A
Phoebe é Australiana, e tem 20 anos! Está a estudar Direito. Informou os
pais que vinha para a Grécia ajudar os refugiados… Hoje foi procurar uma
lavandaria onde nós pudéssemos lavar alguma roupa, não conseguiu mas deu por
terminada a missão e comprou as mais engraçadas cuecas.
As
três juntas agora partilhamos o quarto, o carro, as refeições! Mas mais
importante, divertimo-nos e partilhamos esperanças, preocupações e desabafos.
As horas aqui não são as do tempo normal, passou pouco tempo mas muito para nós. Já
fazemos piadas sobre as outras.
Elas são a minha família aqui.
Olha
Mat, tu sabes como a minha família é importante para mim, aliás, tu sentes o
mesmo! Os meus irmãos são os melhores e os mais bonitos presentes que os meus
pais me podiam ter dado. Não consigo pôr em palavras aquilo que sinto por eles
e acho que tu também não… Eles ocupam uma parte grande do meu coração. São meus
e eu deles.
Penso
muito nos meus irmãos, não principalmente aqui mas sempre. E muitas vezes,
estou a escolher preferidos pelas características que têm. A verdade é que são
todos os meus preferidos. Eles são todos tão diferentes.
O
Vasco, o meu irmão mais velho e o alternativo! Aquele que quando o nosso pai
morreu não me deixava sair de casa de calções porque achava que isso era ser
pai, é o mais maluco de todos… Ele estudou cinema e agora está comigo na
Católica, contesta tudo e tem sempre uma palavra a dizer mas gosta de mim.
Acorda sempre tarde porque vive intensamente de noite e vem irritar-me às
quatro da tarde com brincadeiras, parece um bebé mas eu riu-me com ele. Ele é o mais
protector.
Aqui
no campo, existe um sítio que se chama “Family Compound”, o sítio onde as
famílias dormem mas nos dias mais complicados, só mulheres e crianças podem lá
ficar. Estava a dar umas informações a uma senhora da Síria sobre como apanhar
o Ferry para Atenas no dia seguinte, a traduzir-me estava uma miúda também da
Síria. Ela tinha a minha idade. Quando terminámos este assunto, o irmão dela estava do lado
de fora das grades. Não podia entrar, não havia espaço, eles tinham de se
separar. “Quero estar ao pé de ti, não quero ficar sozinha”, “aí estás melhor,
estou com os nossos irmãos mas está muito frio e não temos sítio para dormir. Aí
tens luz e um sítio quente, amanhã venho buscar-te à porta para nos registarmos”,
“eu não quero, prefiro ter frio e ficar com vocês”, “Não pode ser, gosto de ti,
até amanha”, ele foi embora e ela entrou no contentor, eu fiquei congelada no
mesmo sítio a pensar no Vasco. Ele faria o mesmo por mim. Gosto dele.
O
Afonso, o chato! Ele tem 15 anos e está na idade das asneiras… Está sempre a
pedir beijinhos, é o mais alto, o mais magro, talvez o mais querido mas ainda
assim, o mais chato! É o mais parecido com o nosso pai, é um Gourmet… Se ele é
chato para mim eu tenho a certeza que sou tão ou mais chata com ele, porque o
adoro. Tu conheces bem o Afonso, não preciso de te explicar, eu sei que ele
precisa de mim. Adora o Sporting e acha que sabe dançar!
Aqui
no campo, penso no Afonso muitas vezes quando vejo miúdos que da mesma idade ou
perto, chegam sozinhos. Alguns perderam-se, outros foram mandados pelos pais,
uns têm dinheiros, outros perderam o passaporte. São agora meninos de ninguém.
Procuram sozinhos um sítio onde possam ter oportunidades. Dizem que têm 18 anos
para não terem de ficar sobre a guarda de alguma entidade, querem continuar o
caminho mas nós sabemos que ainda são crianças com bigode. Penso como seria se
o Afonso estivesse numa situação destas, espero que nunca. Gosto dele.
A
Guiomar e o Mateus, são gémeos! Eu não os vejo tantas vezes como gostava porque
são filhos do meu pai e por isso vivem com a mãe deles. Os gémeos nasceram prematuros, e lembro-me de os ver na incubadora
muito pequeninos.
Lembrei-me deles, quando chegou ao campo um bebé de três
meses, muito pequeno, tinha feito a mesma viagem de barco que os adultos e
estava inconsolável. Lembrei-me da incubadora, os gémeos ao menos não tinham
frio e não precisavam de roupa, este bebé tinha vindo de barco durante a noite
com uma manta apenas. Gosto deles.
O
João, o meu irmão mais querido! O João faz hoje 10 anos, por isso parabéns
mano! Ele gosta mesmo deste dia, fica feliz por juntar os amigos e a família por
causa dele. Enquanto me preparava para vir para cá e sabendo a importância que
o João dá a este dia, “Joãozinho, a mana não vai estar cá nos teus anos, ficas
triste?”, “Bem, Matilde, fico triste mas eu acho que é por uma boa razão e os
refugiados precisam mais dos teus beijinhos do que eu”. Ele é muito certinho e
mais ainda envergonhado, todos querem ser amigos dele. É ferranho do Benfica.
Lembrei-me
do Joãozinho quando chegou uma família ao “Family Compound” com três crianças
pequenas. Não tínhamos mais espaço para pôr as pessoas a dormir, era tarde e
estavam a chegar barcos. Conseguimos inventar e esta família ia ficar a dormir
no chão dentro do contentor, mesmo à porta. Fui buscar dois sacos cheios de
cobertores para os poder pôr no chão e fazer uma camada mais quente e espessa.
Quando lá cheguei, apareceu um menino da mesma idade do João. Estava a dizer-me
que era dessa família para eu lhe dar os cobertores. Eu dei… Foi quando me apercebi
que a criança pertencia a outra família. Tive de lhes tirar
os cobertores, “estes são para uma família que está a dormir no chão”.
Devolveram e disseram “ok, no problem”. Pedi muitas desculpas porque sei que
também precisavam mas aqueles não lhes estavam destinados.
Mais
tarde, a mesma criança vem com um amigo a pedir-me desculpa e dá-me um aperto de
mão, eu faço uma festa cabeça, digo que não faz mal. Penso o que faria o João
no lugar deste menino que só queria ajudar a sua família. Não sei se o faria
por vergonha mas também sei que ele dá muita importância à nossa família.
Continuo a pensar…Só sei que esta criança não deveria estar a passar por isto.
Gosto dele.
O Vicente, tem todos os adjetivos! Derreto-me. Para ele nem tenho palavras, leva-me aos extremos. Tudo depende dos dias, nunca se sabe como o Vicente vai acordar. Tem 7 anos e é um regila. Ele consegue fazer o que quer de mim, gosto de o irritar porque dessa maneira consigo que ele venha atrás de mim, provavelmente para me dar um pontapé, mas ao menos vem! Gosto quando ele grita “a Matilde é chata”. Só me deixa dar um beijinho por dia, o resto tem de ser à força! As conversas mais demoradas que consigo ter com o Vicente são sobre futebol, ele está a descobrir este mundo, acha que eu me interesso mas só faço perguntas para continuarmos a falar.
Lembrei-me
dele quando estava a conversar com uns senhores que tinham chegado nesse dia ao
campo. Estavam à espera para se registarem, vieram pedir-me cobertos e ficámos
ali, a conversar. “where are you from Matilda?”, “Portugal”, “ohhhh CRISTIANO
RONALDO”, foi a festa, começámos a fingir que estávamos a fazer passar a bola
uns aos outros… Ri-me a pensar no Vicente, acho que ele ia gostar de saber
isto! Gosto dele.
É difícil olhar para
estas famílias e pessoas sozinhas e saber que pertencem a alguém. São de
alguém. Como eu sou da minha família. Se fosse a minha família a estar nesta
triste, dura e pouco clara situação, gostava que alguém lhes pudesse calçar uns
sapatos quando têm os pés molhados, dar uma manta quando estivessem com frio,
um sorriso quando já poucos sorriem, carregar as malas quando os homens já não
têm força nos braços, pegar nos bebes quando as mães já não os conseguem
acalmar… Eles não pedem muito, ou quase nada para aquilo que estão a precisar,
pedem para a sua família e coisas simples. Não querem confusão, confusa já está
a vida deles.
Um
abraço apertado,
Matilde
Querida Matilde, obrigada pelas partilhas! Grande beijinho e ... orgulho-me de ti como se fosses minha!
ResponderEliminarEu também gosto muito dos meus manos, Matilde. E se calhar foi por isso que quis ter vários filhos: para ter a certeza de que nunca se sentiriam perdidos se nós lhes faltássemos.
ResponderEliminarGostei muito do retrato que fizeste da tua tropa toda. É um retrato de amor.
Gosto que um bocadinho de ti também pertença de alguma forma à nossa família. Nós também te adoramos.
Um grande beijinho
Tia Xica
Querida Matilde, sempre marcantes as suas palavras. A rezar por si todos os dias.bj
ResponderEliminar<3 Querida Matilde, que orgulho!
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